André Filipe Morais, Advogado da CCA em 2019-10-08

OPINIÃO

Legal

De Hong Kong a Bruxelas - ecos e preocupações no “limiar da eternidade”

De Hong Kong, chegam-nos notícias sobre protestos pretensamente religiosos mas que, na sua essência, clamam por mais liberdade, autonomia e pelo reconhecimento de direitos civis e políticos

De Hong Kong a Bruxelas - ecos e preocupações no “limiar da eternidade”

André Filipe Morais, Advogado da CCA

A ilustrar estas notícias, circulam também vídeos e fotografias que mostram os manifestantes a derrubar torres com equipamento de reconhecimento facial, fazendo delas o objeto imediato do seu descontentamento.

Uma notícia recente do Financial Times é a prova de que estes desenvolvimentos não passam despercebidos a Bruxelas, ao dar conta da intenção da Comissão Europeia de regular a utilização de tecnologias de reconhecimento facial, quer por entidades públicas, quer por entidades privadas.

De acordo com esta notícia, um dos principais vetores será o empowerment dos cidadãos europeus com um direito a saber explicitamente quando, como e para que é que a sua imagem está a ser alvo de tratamento por tecnologias de reconhecimento facial. Quaisquer exceções a este direito terão de ser previstas e circunscritas de forma muito cerne.

Esta intenção legislativa da Comissão enquadra-se num esforço mais global de sujeitar a Inteligência Artificial a um quadro ético e jurídico coerente e respeitador dos direitos e liberdades dos cidadãos.

Não por acaso, esta preocupação foi colocada pela nova Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, como uma das prioridades para os primeiros cem dias do seu mandato, pelo que se deverá aguardar, não sem elevada expectativa, desenvolvimentos nesta matéria.

Vamos assim percebendo que não é inocente o ataque dos manifestantes às torres de reconhecimento facial. Desde tempos imemoriais que o olho que tudo vê é associado ao controlo (divino) omnisciente e omnipresente, ideia para que a distopia orwelliana de 1984 contribuiu, ao despertar consciências para os riscos da monitorização constante e invasiva das vidas dos cidadãos.

No entanto, o desenvolvimento e a utilização desta tecnologia não podiam ser mais heterogéneos à volta do Mundo - se em Países mais próximos de nós - política e geograficamente - como é o caso do Reino Unido e da Suécia - só agora começamos a ouvir relatos da utilização (potencialmente abusiva) desta tecnologia (na estação de King’s Cross, para monitorização dos cidadãos e numa escola, para aferição da assiduidade dos alunos, respetivamente), noutras latitudes mais distantes, como é o caso da China, a distopia orwelliana encontra-se bem mais sedimentada. Só a título de exemplo recente, veja-se como a start-up chinesa de reconhecimento facial - Megvii - anunciou já e recentemente a sua entrada em bolsa.

Juridicamente, a utilização do reconhecimento facial, associado à inteligência artificial, para recolha e tratamento de dados de cidadãos, terá de ser limitada por três eixos fundamentais da proteção de dados pessoais - a proporcionalidade (nas suas vertentes de necessidade e adequação), a limitação pela finalidade e, por fim, o direito a conhecer e a recorrer da decisão que resulte da utilização destas tecnologias, com intervenção humana.

Contudo, são de esperar grandes tensões neste ponto, à semelhança do que aconteceu com o RGPD. Aí, contrariamente à narrativa entretanto vulgarizada, foi a preocupação economicista em dinamizar um mercado único digital de transferência de dados pessoais que animou a aprovação de um novo quadro regulatório. Aí como aqui, são de esperar inevitáveis tensões entre os que querem dinamizar um lucrativo mercado tecnológico e por isso esperam um quadro regulatório mais relaxado e aqueles que, não querendo abdicar da proteção dos direitos dos cidadãos, se vão bater pela prevalência dos princípios estruturantes da proteção de dados pessoais.

Contudo, não pode haver ilusões - só erguendo a matriz liberal e europeia dos direitos e liberdades será possível não ficarmos à mercê do Partido e do seu Grande Irmão.

 

por André Filipe Morais, Advogado da CCA

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